Sou visto, logo existo

*Jorge Miklos

No século XVII, o filósofo René Descartes abreviou a sua tese sobre a natureza humana em uma frase: “Cogito ergo sum” (Penso, logo existo). Com essa expressão, o matemático francês, propondo como método a dúvida radical, concluiu que só podemos ter certeza de que existimos porque somos capazes de pensar. Para Descartes, o “cogito” (pensamento) nos confere a certeza da existência.
Séculos depois, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em seu livro 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno (2011), ao refletir acerca do comportamento social no mundo contemporâneo, citou uma cena na qual uma mulher declarou durante um programa muito popular de entrevistas, pela televisão, na frente de milhões de telespectadores, que a ejaculação precoce de seu marido lhe impedira de ter um só orgasmo durante toda sua vida conjugal.
Para Bauman o que houve de tão revolucionário assim na declaração da mulher foram dois fatos: “primeiro, tornar público um tipo de informação que até então era considerado a quintessência da ordem do privado; segundo, usar a arena pública midiática para expressar e discutir um assunto de interesse eminentemente privado.” (p. 36).
Ainda segundo Bauman, as relações sociais passaram – como sugere o psicanalista francês Serge Tisseron – do campo da intimité para o campo da extimité – ou seja, extimidade. Expomos em público os nossos segredos. Eis, assim, o triunfo do exibicionismo na era das redes sociais.
De acordo com Bauman, as celebridades tornaram-se um fenômeno curioso. Elas parecem nos avisar que chegou a hora de rever o famoso veredicto de Descartes, “penso, logo existo”, alterando-o para “sou visto, logo existo”. Cada vez mais pessoas aderem às redes sociais digitais, compartilhando dados e segredos particulares cotidianamente — o que reforça a constatação de Paula Sibilia em seu livro “O show do Eu” (2008) de que está em curso um movimento generalizado de evasão de privacidade.
Isso significa que na sociedade midiática, tanto mais existimos quanto mais vistos formos. E a proliferação do uso das redes sociais encarna essa nova condição, funcionando como padrões a serem seguidos. Exibir-se nas redes sociais digitais, angariar engajamento, amealhar seguidores, contabilizar “likes” é o novo contrato social. Na sociedade midiática e de consumo, as pessoas sonham e lutam para se tornar commodities vendáveis. E o contrário também é verdadeiro. Quanto menos formos vistos nas redes sociais digitais, maior a invisibilidade social. Quem não está no Instagram não existe. E quem angaria milhões de seguidores e likes, é quem tem maior prestígio social. “Dar certo na vida” é conquistar engajamento no perfil.
O que antes era restrito a um pequeno grupo de celebridades agora transbordou para todos os segmentos sociais. A onda deste imperativo da visibilidade pode ser associada a uma compulsão exibicionista, narcísica potencializada pelas redes sociais digitais na ordem cultural denominada por Guy Débord por “Sociedade do Espetáculo”. Na epígrafe do primeiro capítulo, Débord cita o filósofo alemão Ludwig Feuerbach, que viveu no século XIX e antecipou o espírito da nossa época: “Nosso tempo, sem dúvida prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser… O que é sagrado para ele, não passa de ilusão, pois a verdade está no profano”. Outro filósofo francês, Jean Baudrillard, irá nomear essa vida ilusória de simulacro.
As redes sociais tornaram-se vitrines de exibicionismo de personas. Persona é um dos conceitos formulados por Carl Gustav Jung, fundador da Psicologia Analítica. Persona é a máscara social. O termo deriva da palavra latina para máscara usada por atores na época clássica. Daí, persona refere-se à máscara ou face que uma pessoa põe para confrontar o mundo. A persona pode se referir à identidade sexual, um estágio de desenvolvimento (tal como a adolescência), um status social, um trabalho ou profissão. Durante toda uma vida, muitas personas serão usadas e diversas podem ser combinadas em qualquer momento específico. Em termos coletivos, a persona é o que nos dá um lugar social compatível com aquilo que a sociedade moldou. Essa máscara social pode, muitas vezes, ser entendida como nosso próprio eu, e independente do grau com que nos identificamos com ela, é difícil reconhecer que não somos nós, mas que é nossa personagem social e não nossa essência.
Um exemplo emblemático sobre personas pode ser visto em um dos episódios do seriado de televisão britânico, “Black Mirror”. Do gênero ficção científica, criado por Charlie Brooker, o seriado é centrado em temas que analisam a sociedade moderna, particularmente a respeito dos efeitos do uso massivo e expansivo das novas tecnologias.
São episódios com histórias independentes. Porém, o que há em comum entre as narrativas é o interesse em pensar a condição do indivíduo na sociedade tecnológica, em particular, a sociedade tecnológica cibercultural em uma perspectiva crítica, ou seja, desconstruindo a falácia de que o incremento tecnológico implica no desenvolvimento humano. Nesse sentido, o seriado dialoga com uma consolidada tradição filosófica e sociológica que formou uma crítica à ideologia do progresso tecnológico. Entre eles destacamos: Walter Benjamin; Max Horkheimer; Theodor Adorno; Gilberto Dupas; Neil Postman, Lucien Sfez; Eugênio Trivinho; Paul Virilio; Lee Siegel; Eli Parisier; Jaron Lanier; Andrew Keen; Nicholas Carr; Günther Anders, entre outros já citados.
“Black Mirror” se assemelha à trilogia “Matrix”, filme do gênero cyberpunk dirigido e roteirizado pelos irmãos Wachowski que propõe uma narrativa distópica na qual a humanidade inventou uma inteligência artificial e acabou sendo dominada por ela. “Black Mirror” representa um imaginário no qual a alta tecnologia implica um custo visceral para a humanidade.

Nosedive” é o primeiro episódio da terceira temporada de Black Mirror. Estrelado por Bryce Dallas Howard, Alice Eve, Cherry Jones e James Norton, o episódio se passa em um futuro onde uma menina se torna impopular na mídia social.
Lacie Pound (Bryce Dallas Howard) vive em um mundo no qual o valor de uma pessoa na sociedade é metrificado a partir da popularidade que essa pessoa angaria nas redes sociais. Quer dizer que quanto maior o número de likes, maior o valor social que essa pessoa exibe. Nesse “admirável mundo novo”, os likes funcionam como um divisor social, ou seja, os grupos sociais são segmentados pelos likes. Um novo apartheid não mais pela origem étnico racial, mas pela adequação e validação da sociedade em rede. A narrativa é a obsessão de Lacie em conquistar a validação e aprovação social. Para isso, ela precisa ascender no número de likes.
A atitude de Lacie Pound em buscar ostensivamente reconhecimento nas redes sociais ocorre por conta da necessidade de reconhecimento. Necessidade humana, demasiadamente humana, já pontuada por Abraham Maslow e sua famosa pirâmide.
O seriado ilustra que o fazer social de Lacie consiste em responder a um imperativo ditado pelo contexto cultural, da autoexposição, extimidade, nas redes sociais, ou seja: “sou visto, logo existo!”. Só tem existência social aquela pessoa que alcança altos patamares de exposição digital das redes, é visto/reconhecido pela multidão de internautas. O preço inconteste da desejada visibilidade, entretanto, é a possibilidade de ficar à mercê da vigilância alheia. “Ser” e “ter” não bastam. É preciso mostrar. É preciso aparecer, como muito bem observou a pesquisadora da área de cibercultura, Cintia Dal Bello.
Quando o mundo real se transforma em simples imagens, as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico. Isto explica o fato de um operário que recebe um valor irrisório mensalmente gastar grande parte de sua receita em bens de consumo de marcas famosas ou, quando mesmo poupando e isso lhe é impossível, apela para os produtos falsos, mas lhe garante portar tal status. Em um estágio inicial de busca desenfreada pela aceitação social, ter o fake era suficiente.
Black Mirror significa literalmente “espelho negro”. Espelho negro são as telas de celulares, TVs ou computadores, que refletem como um ‘espelho negro’ a nossa condição contemporânea. O indivíduo no caos do capitalismo cibercultural. Nosedive é um termo em inglês que significa “queda livre”.
Somos medidos pelos cliques, pelos likes, pela quantidade de postagem e produção. Essa é a realidade. Somos classificados como vip’spremiumdiamondexclusive. Normalmente são classificações conseguidas com custo em dinheiro, porém, a influência e a visibilidade são as novas moedas do capitalismo cognitivo.
O que é exibido? Nós, ou nossas personas? Só o fato de discordar de uma opinião pode gerar nas redes sociais discussões ferrenhas e inimizades eternas. Imagine se sua vida dependesse de aprovação constante, para tudo e de todos? Seríamos mais condescendentes, nada críticos, certamente falsos e, no fundo, provavelmente, infelizes.

 

*Jorge Miklos é sociólogo, psicólogo e psicanalista na abordagem analítica integrativa. É mestre em Ciências da Religião e doutor em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Trabalha na interface entre Psicanálise, Religião e Cultura. Suas reflexões abordam o vínculo social, o mito, a literatura, o cinema, a cibercultura, os conflitos, a política e as questões contemporâneas como gênero, masculinidades, religião, vida digital e diversidade. Atua como Professor e Pesquisador no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Midiática da Universidade Paulista.